sábado, 10 de setembro de 2016

Meu ódio será sua herança

Uma das vantagens – se é que existe alguma vantagem nisso – de ter vivido muito tempo é que você leu muitos livros e viu muitos filmes. Alguns que pareciam esquecidos no baú da memória, de repente ressurgem com a mesma força que tiveram no passado. Às vezes, basta uma palavra para trazê-los de volta.
Há pouco, estava pensando em amor e ódio, dois lados da mesma moeda e me sentia culpado por não saber exercitá-los com a intensidade merecida e descobria com grande desdouro para a minha biografia, que no amor, sou cético sobre toda sua profundidade e no ódio, sou incapaz de saboreá-lo com o gosto devido.
Não quero falar de amor, mas de ódio.
O Pintaúde, que como eu, é um provocador social, tem entre seus amigos virtuais um cara que mais adiante vou dizer o nome e que entrou numa polêmica nossa com frases inteligentes e irônicas, de certa forma, descontruindo uma boutade que eu havia feito.
Não pelo que disse, mas pelo que fez no passado, eu devia odiar esse cara.
Não só ele, mas muitos outros.
Então, voltamos ás primeiras linhas de texto: as lembranças do passado.
Lembrei daquele clássico do faroeste Meu Ódio Será Sua Herança (Wild Bunch – O bando selvagem), que Sam Peckinpah fez em 1969, com Willian Holden, Ernest Borglne e Robert Ryan.
Em qualquer enciclopédia sobre o cinema, você vai ler que o filme, ao colocar sua ação em 1913, durante a revolução mexicana, é uma alegoria sobre o fim de uma era, onde o cowboy era o grande herói e o início de outra, onde as máquinas de guerra substituíram o cavalo e a winchester.
No youtube você poder ver o filme inteiro (só por favor não veja na versão dublada), mas eu não vou fazer isso. Prefiro ficar com minhas lembranças.
E o que elas dizem?
Dizem que temos que exaurir nossos sentimentos até a última gota.
No caso do filme, os sentimentos são de amizade e de ódio.
E isso, me trouxe ao presente.
Preciso urgentemente voltar a odiar algumas pessoas pelo que me fizeram no passado ou deixaram de fazer.
Nesse patamar de ódio a ser elaborado, estão aquelas pessoas que, em algum momento da vida, me impediram de continuar fazendo alguma coisa que gostava muito.
Por exemplo, professor da Famecos.
Não que fosse um grande professor, mas gostava muito de algumas polêmicas que eram possíveis ter com uns poucos alunos.
O Fernando Azevedo, a mando da Sílvia Kock, sem nenhum grande motivo, me mandou embora depois de 32 anos como professor.
Ódio eterno ao Fernando Azevedo e a Sílvia Koch.
Na Marca Propaganda, que ajudei a se tornar uma grande agência, o Eduardo Wilrrich Neto me mandou embora para agradar um cliente que não simpatizava comigo.
Ódio eterno ao Eduardo Willrich Neto
Na MPM, o Beto Soares me mandou embora porque temia a minha concorrência ao seu recém-criado cargo de diretor de criação.
Ódio eterno ao Beto Soares.
Agora entre o amigo virtual do Pintaúde.
Numa revista sobre propaganda eu escrevia umas histórias fantasiosas sobre personagens imaginários e alguns reais e eu não ganhava um tostão por isso
Sei que algumas pessoas gostavam, mas aí o Júio Ribeiro (o atual amigo do Pintaúde) me mandou embora por alguma razão que nunca disse qual era.
Ódio eterno ao Júlio Ribeiro.
Prometo me esforçar profundamente para deixar este meu ódio como herança para quem quiser desfrutá-lo.
Só, por favor, não repetiam na minha despedida, aquela baboseira cristã de que o ódio faz mal a quem odeia e que o importante é o amar.

Amor e ódio, é tudo a mesma coisa.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O lobo do homem

Uma das afirmações clássicas do marxismo é de que os valores da superestrutura são condicionados pela infraestrutura.
Trocando em miúdos:  para Karl Marx, as instituições, inclusive o Estado, a cultura e os valores éticos e morais da sociedade, (superestrutura), são condicionados pela maneira como essa sociedade estabelece suas relações de produção (infraestrutura), embora, dialeticamente estas últimas também influenciem as primeiras.
Assim, historicamente, o feudalismo tinha determinados valores que permeavam a sociedade da época, que foram modificados, na medida que ele foi substituído pela sociedade capitalista.
Essa mudança não se faz abruptamente e por isso é possível identificar nos dias de hoje certos comportamentos e atitudes morais que correspondem a um tipo de sociedade já ultrapassada historicamente.
Na sociedade capitalista brasileira, com suas brutais diferenças de classes, ainda é possível identificar determinados tipos de comportamento que correspondem ao período escravista, quando os seres humanos eram divididos de uma maneira objetiva pela cor da pele.
Mas, de um modo geral, o que se observa na sociedade brasileira é que essa divisão se faz seguindo o modelo clássico do capitalismo, entre os que são os donos dos mecanismos de produção e os que vendem sua força de trabalho nesse processo.
Ou seja, é a reprodução clássica do ensinamento marxista, embora nos dias atuais tenha se criado um enorme segmento de público que não se enquadra claramente entre as duas posições e que não foi percebido com clareza por Marx na sua época.
São os profissionais liberais e uma enorme gama de pessoas que, de alguma maneira prestam serviços ao Estado, guardião do status quod dominante, exercendo as mais variadas funções, desde o poder armado que o defende, até aqueles que executam as mais humildes atividades, mesmo assim imprescindíveis a sua existência.
São pessoas que, na divisão clássica marxista, vivem da venda da sua força de trabalho, ainda que seja um trabalho intelectual e que deveriam, ideologicamente, se colocar do lado dos oprimidos, mas que, em troca dos muitos benefícios que recebem ou da expectativa de recebê-los, se colocam ideologicamente do lado dos opressores.
O interessante na observação desse processo, é constatarmos que o sistema capitalista não só é perverso na sua essência, como é capaz de introjetar seus valores na mente das pessoas, fazendo com que elas olhem para seus semelhantes de forma preconceituosa, mesmo dos que sejam socialmente seus iguais.
Em qualquer lugar que frequentamos, nas discussões políticas ou nos meios de comunicação, podemos constatar a forma diferenciada de tratamentos usados para pessoas que pertençam a segmentos sociais diferentes.
Uns são tratados como doutores, embora nem todos tenham formalmente esse título, enquanto a outros são reservados os adjetivos menos qualificadores.
Basta um simples passar de olhos nesses programas policiais tão comuns na televisão. Eles refletem bem o que pensam os servidores das classes dominantes no Brasil sobre os excluídos socialmente, quando acusados de algum crime. São bandidos, marginais, facínoras, ou outros qualificativos, sempre esquecidos, quando se trata de um representante da classe privilegiada que, por acaso, não apareça como vítima, mas como agente de um crime.
Além dessa constatação óbvia de um tratamento específico para cada segmento de classe social, existe outro, não tão explicito, mas que permeia as relações sociais no Brasil.
É o desprezo pelo pobre e sua cultura, que nos deparamos a todo momento nas manifestações públicas, daqueles que fazem o papel de porta vozes da classe dominante.
Talvez seja nessa área em que podemos identificar com mais clareza como funciona a divisão de classes na sociedade capitalista.
O que deveria identificar o ser humano seria a sua solidariedade com o próximo.
Em todas os compêndios de ética e moral, essa qualidade se destaca como a principal e por isso foi incorporada à maioria das religiões.
Ela foi fundamental para a preservação da espécie humana e se hoje perdeu esse significado maior, conserva o seu valor como um atestado de que quem a porta, está preparado para viver em sociedade.
O capitalismo prega o oposto disso. Ele vê em que cada pessoa um concorrente, alguém a quem é preciso derrotar, um competidor que almeja aquilo que é de minha propriedade.
Esse novo valor (ou desvalor) ético é apresentado pelos instrumentos ideológicos que o sistema dispõe (meios de comunicação, igrejas, escolas) como a forma de uma grande conquista individual, como uma maneira de se sobressair de todo o grupo.
Em vez da solidariedade, o empreendedorismo.
Com isso, a conquista do poder se transforma numa meta a ser alcançada, não apenas por aqueles que dispõe de condições para tal, mas também para outros, sem essa possibilidade, quando se torna uma miragem, uma forma de alienação social.

Jean Jacques Rousseau (1712/1778) via o homem com um ser bom e solidário no seu estado natural e que teria sido pervertido pela sociedade e defendia a ideia de que só garantindo a liberdade de todos é que as liberdades individuais seriam também preservadas.
Já Thomas Hobbes (1588/1679), cunhou a expressão o Homem é o lobo do Homem, acreditando que o fato dos homens serem perfeitamente iguais e desejarem as mesmas coisas e terem o mesmo instinto de autopreservação, fazia com que desejassem as mesmas coisas. Isso seria a razão para as guerras, que só seriam superadas pela existência de um contrato entre esses homens que renunciaram suas liberdades em troca da paz
Essa diferença entre os dois filósofos sobre a condição natural do ser humano, não nos impede de ver que na sociedade capitalista, o “bom selvagem” de Rousseau se perde nos seus primeiros anos de vida e o que ressurge é o “homem lobo do homem” de Hobbes, não lutando mais pela sua simples sobrevivência, mas pelo poder sobre os outros homens.
É o capitalismo, onde o contrato social que Hobbes defendia, é apenas formal e serve apenas para mascarar a exploração da maioria dos seres humanos por uma minoria privilegiada materialmente



terça-feira, 6 de setembro de 2016

Uma alegoria do capitalismo

Somente através da arte é que é possível representar todo o caráter amoral e aético do sistema capitalista.
Na vida real, ele se esconde atrás de representações positivas sobre o seu papel como impulsionador do desenvolvimento e se mistura com as ações dos seus agentes – os capitalistas – que como todos os seres humanos, têm qualidades positivas e negativas.
Sua essência é o lucro a qualquer custo e nessa busca, sua única barreira é aquela erguida por suas vítimas. Em tempos de relativa normalidade, ele contorna essas barreiras usando suas poderosas armas, que vão desde a venda publicitária de suas pretensas qualidades, buscando a conquista ideológica de suas vítimas, até a mais dura repressão, quando as resistências se tornam muito fortes.
Nos momentos de crise, ele assume a sua face mais cruel e predadora. O exemplo clássico dessa radicalização total foi dado pelo capitalismo alemão, na época do nazismo, quando transformou seres humanos em itens de produção, sugados até a sua exaustão total.
As mais notórias empresas colaboradoras dos nazistas foram a Bayer, a IG Farben, a Wolskwagen, a Siemens e Hugo Boss (fabricava os uniformes nazistas) , além das filiais americanas na Alemanha, da Kodak, Coca-Cola, que durante a guerra produziu o refrigerante Fanta para os soldados alemães, a IBM e a Ford.
Todas elas, direta ou indiretamente, se utilizaram do trabalho escravo de prisioneiros dos campos de concentração na Alemanha, Polônia e Ucrânia.  Em determinado momento, quatro de cada cinco empregados da Voks, eram prisioneiros de guerra.
Mesmo assim, poucos associam o nacional-socialismo de Hitler à forma mais extremada do capitalismo, preferindo ver apenas seus aspectos mais distorcidos, como a perseguição racial aos judeus, quando sua essência estava em levar às últimas consequências o lema do lucro a qualquer preço.
Esse objetivo era buscado se utilizando duas regras de ouro do capitalismo: derrotar a concorrência e produzir ao menor custo possível.
O primeiro objetivo era obtido através das guerras de conquista e o segundo, usando a mão de obra totalmente escrava.
Hoje, até por força de resistências históricas dos trabalhadores oprimidos, o sistema capitalista assume uma forma mais civilizada, mas em determinados momentos, retorna às suas origens selvagens.
Aqui entra a função da arte.
Uma leitura mais atenta da atual série de televisão Narcos, mostrada no mundo inteiro pelo Netflix, mostra o capitalismo com a sua cara mais destruidora.
Ao lado dos produtos estritamente necessários à sobrevivência dos seres humanos, gerados nas fábricas do sistema em todo o mundo, existem outros, que a civilização tornou importantes para à vida moderna, da arte a itens de conforto pessoal, mas também uma enorme quantidade de objetos que só existem para manter a grande máquina capitalista funcionando.
Além dessas categorias, existem também produtos totalmente nocivos aos seres humanos, reconhecidos pela maioria das pessoas, mas que continuam a ser produzidos legalmente, como no caso dos cigarros.
Numa posição extrema, existe a grande indústria ilegal da produção e distribuição de drogas, que pelo seu caráter profundamente destruidor, é tratada como uma ovelha negra do sistema capitalista, mas que com seus poderosos tentáculos se infiltra em muitas outras atividades legais.
A percepção comum das pessoas é de que se trata de uma atividade totalmente marginal com regras próprias e geridas por criminosos totalmente desumanos.
Embora, talvez não fosse intenção dos seus criadores, a série Narcos, sobre o mega traficante colombiano Pablo Escobar, se transforma numa alegoria sobre como funciona o sistema capitalista.
Os grupos familiares de traficantes são verdadeiras empresas que buscam maximizar seus lucros e como agem à margem das leis, decidem seus litígios não nos tribunais, mas através de ações armadas. Curiosamente, vendendo um produto fruto da modernidade dos costumes, se apoiam em práticas do capitalismo mais primitivo.
Suas lideranças, começando pelo próprio Pablo Escobar respeitam costumes religiosos, são amorosos pais de família e se comovem com as dificuldades materiais de seus empregados. O assistencialismo que Pablo Escobar usa para buscar apoio das comunidades onde atua, é o mesmo que o capitalista moderno usa através de suas fundações e obras de benemerência.
Até mesmo o patrocínio de times de futebol, hoje usado a não mais poder pelas grandes empresas, era praticado por Escobar em relação ao Atlético Nacional de Medelin.
Hoje, diretamente ou através de prepostos, os empresários buscam assentos nos parlamentos para influenciar em suas decisões e não poucas vezes reivindicam os maiores cargos de suas nações (Donald Trump quer ser presidente dos Estados Unidos), tal como   Pablo Escobar, que foi deputado no parlamento colombiano e que sonhava ser presidente.

Narcos é um retrato do sistema capitalista despido de suas vestes mais coloridas e atraentes, exatamente como ele é na sua essência.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A importância de um gesto


Imagens e gestos se tornam, muitas vezes, na história, a melhor representação de determinados acontecimentos e sintetizam numa fração de segundo o que precisaria ser explicado com milhares de palavras.
Para os brasileiros, o momento da independência, foi sempre representado pela maneira como o pintor Pedro Américo o imaginou no seu quadro O Grito do Ipiranga.
Qual a melhor representação do fim da segunda guerra mundial do que o hasteamento da bandeira soviética no topo do semidestruído Reischtag alemão, em maio de 1945, em Berlim?
As vezes é preciso apenas uma frase para representar todo um sentimento de heroísmo e resistência à sanha dos inimigos.
Quando os persas atacaram a Grécia, a última resistência se encontrava no Desfiladeiro das Termópilas, Diante de milhares de soldados de Xerxes, o rei Leônidas resistia com seus 300 espartanos e quando ouviu do rei persa que devia desistir da defesa, porque se as flechas persas fossem disparadas todas ao mesmo tempo cobriria a luz do sol, Leônidas responder com uma simples frase:
- Melhor, combateremos à sombra.
O que melhor pode representar a submissão da política externa brasileiro aos interesses dos Estados Unidos do que o gesto do senador baiano Otávio Mangabeira beijando a mão do presidente americano Dwight Eisenhower, em 1946.
Na época em que vivemos, com a multiplicação dos meios de comunicação, alguém que representa o seu país tem obrigação de policiar seus gestos.
Não foi o que fez Michel Temer em visita à China.
Fora da sua agenda oficial, ele visitou durante 50 minutos um shopping na cidade de Hangzhou e gastou 798 RMB, o equivalente a 400 reais para comprar um par de sapatos.
Sua imagem, experimentando os sapatos logo estava em toda a rede social.
Qual o problema?
Em março passado, a Abicalçados (Associação Brasileira das Indústrias de Calçados) festejou como "um alívio" a extensão por cinco anos do direito antidumping contra sapatos chineses, com a aplicação de uma sobretaxa de US$ 10,22 a cada par importado do país. Segundo a entidade, o encarecimento do produto chinês para os compradores brasileiros permitiu a recuperação de postos de trabalho no Brasil quando foi aplicada em 2009. Ela teve extensões em 2010 e agora em 2016.
Segundo dados da entidade, em 2009 a importação de calçados chineses foi equivalente a US$ 183,6 milhões, cerca de 70% do total importado pelo Brasil naquele ano. Após a aplicação da sobretaxa, em 2010, o número caiu para US$ 54,9 milhões, 18% do total das importações de calçados no país. Em 2015, a importação de calçados da China foi de US$ 45,9 milhões.
Na época da renovação, o presidente-executivo da associação, Heitor Klein, afirmou que a medida asseguraria a sobrevivência da indústria, que em 2015 viu a sua produção cair 7,6% devido ao encolhimento da demanda no mercado doméstico.
A imagem de Temer representa com a força de um símbolo o seu desinteresse pela defesa da economia brasileira, da mesma maneira que o beija-mão de Mangabeira, em 1946, representou a submissão do governo brasileiro aos interesses americanos.

A melhor hora para morrer

Jesus Cristo, segundo a tradição cristã, morreu aos 33 anos. Fora dessa mitologia religiosa, outros grandes personagens, cujos registros históricos não trazem nenhuma dúvida sobre suas existências, morreram relativamente jovens para os padrões de vida atual.
Alexandre, o Grande, da Macedônia, como Cristo, também morreu aos 33 anos, depois de levar a cultura helenística para boa parte do mundo então conhecido, uns 300 anos antes da nossa era.
Napoleão Bonaparte viveu apenas 52 anos, suficientes para conquistar pela força das armas boa parte da Europa.
Lenin, que comandou a mais importante revolução do século passado, viveu 54 anos.
Mesmo o grande teórico do comunismo, Karl Marx, cujas fotos lembram um ancião, morreu aos 65 anos.
O que dizer então dos artistas?
Castro Alves, o poeta baiano do Navio Negreiro, morreu aos 24 anos.
James Dean, que seria o maior astro de Hollywood, no pós-guerra, viveu até a mesma idade de Castro Alves, 24 anos.
O grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos morreu aos 60 anos
John Lennon, morreu aos 40 anos e Ernest Hemingway, apesar de viver até os 61, escreveu suas obras primas – Por quem os sinos dobram e o Velho e o mar – entre 40 e 50 anos.
Hoje, é comum as pessoas viverem até os 80, ou mesmo 90 anos.
O problema é se vale a pena.
Situado no topo da vida animal, o homem se distinguiu de seus ancestrais pela consciência que teve da sua existência. Isso permitiu que sua vida útil pudesse ser balizada por dois parâmetros: a possibilidade física de continuar cumprindo o papel primordial de todos os seres vivos, de perpetuar a sua espécie e a possibilidade mental de ter consciência de seus atos.
A medicina, pelo seu espetacular desenvolvimento, principalmente na segunda metade do século passado, tem conseguido prolongar a vida útil do ser humano por muitos anos, mas obviamente é incapaz de evitar o seu envelhecimento e morte.
Ocorre que, o envelhecimento físico e o mental não obedecem a mesma linha de tempo. Homens, já incapazes de cumprir sua função de conservação da espécie, são ainda mentalmente capazes de usar sua inteligência superior para realizar obras importantes para a humanidade.
O problema crucial é que essa usina de ideias, que funciona dentro do nosso cérebro e que aparentemente tem vida própria, está atrelada à sua base física.
O que chamamos de espírito humano não existe fora da matéria.
E como, embora as vezes pareça que prescinda dessa base material (as religiões vivem dessa suposição) ele sofre das doenças do corpo e vai se extinguindo aos poucos.
Então, assistimos essas pessoas perderem aquilo que as caracterizava como seres humanos, a consciência da existência e a capacidade de, com base em experiências passadas, elaborar projetos para o futuro.
São pessoas que se tornaram apenas corpos vazios, mantidos vivos por uma deturpação perversa da medicina, que atende, muitas vezes, apenas as expectativas dos outros (parentes e amigos) incapazes de se permitir um gesto de adeus definitivo.

No seu extraordinário romance O Drama de Jean Barois, Roger Martin du Gard, intuiu que seu personagem poderia estar condenado a se tornar também um morto vivo e se antecipou ao futuro, deixando um testamento, cuja primeira frase é: o homem que sou hoje aos 40 anos, deve prevalecer sobre o velho que serei um dia.

domingo, 4 de setembro de 2016

Os isentos

Na longa entrevista que concedeu ao site UOL, o jornalista José Trajano critica o jornalismo esportivo no Brasil dizendo que ele é feito por pessoas, que com raras exceções, são profundamente alienadas das questões políticas e toca rapidamente nas declarações de isenção na preferência clubística que elas dizem professar.
De todas as opções que somos levados a fazer na vida, talvez aquela que fizemos sem o menor interesse por algum tipo de recompensa, é pelo time de futebol para o qual vamos torcer pelo resto da vida. Aqui no Rio Grande do Sul, na sua grande maioria, as pessoas escolhem torcer para o Internacional ou para o Grêmio, esperando receber em troca apenas a alegria da vitória ou a tristeza da derrota, mas jamais se ouviu dizer de alguém mudou de lado por causa de uma dessas duas possíveis consequências.
Somos sempre fieis a essa escolha voluntária. Troca-se de mulher, troca-se de marido, mas não se troca de clube de futebol.
É claro que isso vale para os apaixonados pelo futebol e não para aqueles que só dizem assistir futebol – normalmente na televisão – quando joga a seleção brasileira. Nesse caso, pouco existe de paixão pelo futebol ou por um time. É apenas um modismo imposto pela mídia.
Vamos então aos que são pagos para falar sobre futebol no rádio, na televisão e nos jornais, um sonho de consumo de milhares de pessoas que são apenas torcedores.
Eles se transformam em figuras públicas, invejadas pela maioria e capazes, com suas opiniões, de mudar para melhor ou para pior, a vida dos clubes e seus torcedores.
Independente de algumas qualidades que possam exibir, basicamente a vocação deles para o exercício de suas profissões começou de uma maneira muito semelhante a dos que hoje são seus ouvintes, telespectadores ou leitores, ou seja, praticando ou apenas olhando com grande interesse para o futebol.
Como basicamente quase todos eles vieram de uma classe média razoavelmente instruída, começaram suas vivências com o futebol nos campos dos colégios onde estudaram e aí, todos eles escolheram um lado.
Ou eram colorados ou gremistas.
É de se duvidar que um menino de 10 anos se dissesse isento quanto as suas preferências pelo vermelho ou pelo azul.
Mas, quando por sorte ou talento, passaram à condição de jornalistas esportivos, começaram a se proclamar isentos, talvez acreditando que com isso tivessem suas opiniões mais respeitadas.
Levam a alienação, que José Trajano enxerga no campo político, para o terreno esportivo, de certa forma enganando seus leitores, ouvintes ou telespectadores, com uma isenção que não existe e que se existisse seria mais grave ainda.
Como confiar numa pessoa que nem sequer no campo esportivo é capaz de tomar uma posição.
Na política, certamente ela e diz também isenta, neutra, alienada, mas como disse uma vez Bertold Brecht, é o pior tipo de ignorante, a ignorante política.
No passado João Saldanha sempre se disse torcedor do Botafogo e nem por isso, deixou de ser respeitado. Pelo contrário, sempre foi ouvido com atenção tanto por botafoguenses como pelos seus adversários.
João Kfoury é corintiano e nem por isso deixa de ser um dos melhores cronistas esportivos do Brasil. Agora, José Trajano se diz torcedor do São Paulo.
Ary Barroso, o criador da música brasileira mais conhecida no mundo inteiro – Aquarela do Brasil - foi também locutor esportivo. Torcedor confesso do Flamengo, torcia descaradamente a favor do rubro-negro nas transmissões que eram feitas pelo rádio. Quando o Flamengo era atacado, ele dizia: "Ih, lá vem os inimigos. Eu não quero nem olhar.", se recusando a nar rar o gol do adversário.

Não precisava chegar a tanto, mas a tal isenção politicamente correta dos nossos jornalistas esportivos, é falsa, porque certamente lá no seu íntimo, continuam torcedores do time de sua infância e se não for assim, é ainda pior, porque venderam sua alma por alguns minutos de fama.

sábado, 3 de setembro de 2016

Uma questão de semântica

O primeiro passo para a pacificação dos brasileiros deverá ser dado na área da semântica e vai precisar do auxílio de filólogos e professores da língua portuguesa. Precisamos definir com urgência o significado de algumas palavras da nossa língua, antes que se estabeleça uma anarquia total, onde a cada dia, velhos termos, que ontem serviam como sinônimos de alguma coisa, hoje são seus antônimos.
Um exemplo: Michel Temer, aquele aclamado pela senadora Kátia Abreu como o grande constitucionalista brasileiro, tem horror que o chamem de golpista e traidor. Ninguém o chama assim por mal. É que até ontem, as pessoas pensavam que organizar um movimento para derrubar uma presidenta legitimamente eleita e que não tivesse cometido nenhum ato atentatório à constituição, seria um golpe e que se aliar aos inimigos políticos do partido que o ajudou a eleger-se vice-presidente, seria traição.
O senador Aécio Neves, que não se conforma em ter sido derrotado nas eleições de 2014 e desde então se recusa a aceitar o resultado da vontade popular, se diz democrata.
Então, urgentemente precisamos definir o significado de algumas palavras fundamentais para a vida política brasileira.
Começamos pela mais usada e pervertida de todas as palavras, democracia e na sequência os que dizem a respeitar, os democratas.
A sua mais simples definição é aquela que diz que democracia é a forma de governo em que a soberania é exercida pelo povo.
Como vivemos numa época onde cada vez mais dependemos do que dizem as fontes eletrônicas, vamos copiar a Wikipédia:
“Democracia é um regime político em que todos os cidadãos participam igualmente, diretamente ou através de representantes eleitos, na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governança através do sufrágio universal. “
Parece um saco sem fundo, onde cabe a maioria dos políticos brasileiros, porque todos eles, inclusive os senhores Eduardo Campos e Michel Temer, repetem essas definições em seus discursos.
Golpe de estado ou revolução?
Na visão clássica dessas duas palavras, golpe significa derrubar, ilegalmente, um governo constitucionalmente legítimo e revolução, uma mudança drástica na organização social e econômica de um país.
O ilegalmente, presente na definição de golpe de estado, é que abre a perspectiva de grandes confusões, pois que entra no campo jurídico onde as interpretações, às vezes, valem mais do que as certezas.
No consenso da maioria das pessoas, qual seria o maior golpe, dado ilegalmente, contra a democracia na história da humanidade. Possivelmente, Adolf Hilter, com a instauração do regime nazista na Alemanha, seria o mais indicado. Só que, tecnicamente, Hitler chegou ao poder pela via parlamentar em 1933. Seu partido, o Nacional Socialista, foi escolhido pelo Presidente Hindenburg para formar o governo.
O golpe que Hitler, o famoso Putsch de Munique, 10 anos antes, só rendeu a Hitler algum tempo de prisão.
O conceito de revolução pode ser aplicado à francesa, à chinesa, à soviética, à Inglesa e à cubana, com mais ou menos precisão, porque elas tiveram um sentido de lutas de classe e mudaram, pelo menos durante algum tempo, a correlação entre as forças sociais e políticas de seus países.
Enquanto a palavra golpe é abominada pelos seus autores, a palavra revolução é sempre benvinda, mesmo quando não tem essas características.
No Rio Grande do Sul, chamam o movimento dos grandes fazendeiros contra o poder central por divergências menores em questões econômicas, de Revolução Farroupilha. Obviamente um exagero, tanto quanto chamar os movimentos de 1930 e 1932, de revoluções.
A de 30, que levou Getúlio Vargas ao governo, ainda poderia ter algumas características revolucionárias na medida que tentou substituir um grupo conservador por outro mais avançado politicamente, embora na essência o poder real continuasse longe do povo que o movimento dizia representar.
A de 32, dita constitucionalista, foi uma tentativa dos derrotados em 30, de recuperar o terreno perdido. Ela olhava para o passado e não para o futuro, como devem ser as revoluções.
Em 1964, os generais que tomaram o poder no Brasil, batizaram o movimento de Revolução de 31 de Março. Não foi nunca uma revolução, e nem foi no dia 31 de março. Foi um golpe de estado e se deu no dia primeiro de abril, o chamado dia dos bobos.
Supondo que os estudiosos da língua portuguesa chegassem a conclusão que a definição de democracia está correta – é a expressão da vontade do povo – seria preciso então se adotar com urgência, medidas que estimulasse essa vontade a se expressar livremente e depois, que ela não pudesse ser fraudada.
Em 1917, depois que os bolcheviques assumiram o poder na Rússia, Lenin disse aos seus seguidores que o processo revolucionário recém estava começando. A grande batalha não fora derrubar o regime do Tzar e depois o governo de Kerensky, mas conscientizar o povo dos seus direitos como classe social.
Então, as tarefas da esquerda hoje são, menos pensar sobre como vencer as eleições, embora não possa se omitir também das lutas políticas, municipais agora e estaduais e nacional, em 2018, e mais, a de começar a explicar para o povo o significado de algumas palavras, para que ele possa identificar com mais precisão quem são, por exemplo, os democratas e os golpistas.
Com Lula e Dilma, o PT chegou ao governo no Brasil, mas nunca teve o poder real em suas mãos. Por uma série de razões, ele deixou escapar essa oportunidade histórica e permitiu com suas alianças espúrias, inclusive um retrocesso político.
Os erros e vacilações do governo Jango ajudaram um golpe militar que durante 20 anos atrasou o desenvolvimento democrático do Brasil.
O novo golpe em 2016, em boa parte fruto das políticas de acomodação de Lula e Dilma, precisa ter uma vida menor. Para isso é preciso começar logo o processo de conscientização de todo o povo.
A discussão franca e aberta sobre os erros cometidos pelo PT e seus aliados é um primeiro passo nesse sentido.